Favoritismo | Na Medida

Ele não sabe explicar exatamente como aconteceu, mas aconteceu.  Meu amigo Marcos deixou sua filha num McDonald’s e só descobriu o fato duas horas depois, quando chegou em casa!  Conforme ele me contou,  havia pedido para seus filhos entrarem no carro enquanto ele tirava a mesa.  Só que sua filha estava no banheiro, e quando saiu, a família havia desaparecido.  No carro, as crianças logo pegaram no sono.  Foi somente quando chegaram em casa, e mamãe perguntou sobre Daniela, que perceberam sua falta.  Ainda posso imaginar a cara do Marcos tentando explicar para sua esposa o que havia acontecido!  Graças a Deus, depois de algumas horas de ansiedade, a família estava reunida outra vez.  (Talvez seja mais fácil entender esta situação sabendo que meu amigo, que por sinal é pastor, tem oito filhos.  É um milagre que ele não tenha perdido alguns outros pelo caminho!)

Eu e a minha esposa temos 6 filhos.  E também temos nossas história pra contar de um filho ou outro “esquecido” temporariamente.  Mas o esquecimento físico me faz pensar em outras formas de deixar para trás meus filhos.   Será que me esqueci da Shelly emocionalmente?  Será que o Daniel ficou para trás espiritualmente?  Será que a quantidade de tempo que estou investindo com  Keila ou Juliana equivale à que já passei com Stephen e Davi?  Será que, mesmo sem querer, estou deixando uma dessas vidas preciosas “cair no buraco”?

 O Problema

“Esqueceram de mim” talvez seja um dos gritos de desespero mais trágicos na família cristã. Infelizmente, muitas vezes os filhos só conseguem sussurrar esse grito, embora seu eco ressoe pelos corredores do lar  durante muito tempo.

O problema chama-se favoritismo.  É um pecado sutil, e a maioria dos pais que o comete não tem a mínima ideia de que está favorecendo um filho mais que o outro.  Poucos pais o fariam intencionalmente.  Mas não importa.  Os resultados na vida de um filho podem ser catastróficos: Insegurança, rivalidade entre irmãos, desobediência, rebeldia, ira, ódio, amargura, imoralidade, suicídio.

Também ão importa tanto se o favoritismo é real ou apenas fruto da imaginação de seu filho. Importa que cada filho se sinta especial, amado incondicionalmente, e seguro na família.

Um Teste

Um simples teste pode nos ajudar a descobrir se estamos favorecendo um filho mais que outro, ou se talvez em uma área estamos em falta com algum de nossos filhos.  Responda estas perguntas honestamente,  “sim”ou “não”, junto com seu cônjuge, se possível:

1) Nunca tivemos  problema de rivalidade entre nossos filhos.

2) Periodicamente investimos tempo individual com cada um dos nossos filhos  .

3) Elogiamos em particular e em público cada um dos nossos filhos.

4) Não fazemos comparações entre nossos filhos.

5) Nossos filhos se alegram quando um de seus irmãos se destaca, ganha um prêmio, ou é elogiado

Se você respondeu “SIM” a todas estas perguntas, não precisa prosseguir na leitura deste  artigo (ou talvez você ainda não tenha filhos!).  Mas para nós que somos meros mortais, existe luz bíblica que esclarece o problema e dá conselhos sadios para evitar a síndrome de “Esqueceram de Mim”.

A Perspectiva Bíblica

A Bíblia confirma a natureza destrutiva do favoritismo quando proíbe a parcialidade no contexto da igreja local (Tg 2:1-9) e no governo (Pv. 29:4, 14).  O favoritismo mina o alicerce da sociedade.

O favoritismo também enfraquece o fundamento da família.  Pais provocam seus filhos à ira (Ef. 6:4), e os irritam, até que fiquem desanimados (Cl. 3:21).

Mas de todo o texto bíblico, Gênesis, o livro dos começos, é o que mais ensina sobre as “rachaduras da parcialidade” que minam o alicerce do lar.  Favoritismo destrói a família de dentro para fora.

Este fato é claramente identificado na história dos grandes patriarcas.  E ainda pior, o pecado dos pais repetiu-se na vida dos filhos até a quarta geração.  As conseqüências nos atingem até hoje.

Abraão, o “Pai de muitas nações” gerou um filho com Hagar, serva da sua esposa Sarai (Gn. 16).  Os atritos entre Sarai e Hagar manifestaram-se na vida dos seus filhos Isaque e Ismael, até que Ismael e Hagar foram expulsos do círculo familiar (Gn. 21).  Ismael, mais tarde, foi o progenitor das nações árabes, que até hoje são inimigas da descendência de Isaque (Gn. 25:12-18).

Isaque.  As sementes de favoritismo plantadas pelo pai Abraão cresceram na vida do filho.  Isaque e Rebeca geraram gêmeos–Esaú  e Jacó.  Isaque amava mais o primogênito Esaú, homem caçador e “do campo”, enquanto Rebeca amava a Jacó, homem manso e “de casa” (Gn. 25:28).  O resultado naquela família foi mentira, engano, roubo, suspeita, manipulação, ódio, e, finalmente, uma família desfeita.  Este quadro repetiu-se na descendência dos dois filhos também.  A nação de Edom, que veio de Esaú,  e de Israel, que veio de Jacó,  eram inimigas mortais.

Jacó.  A praga do favoritismo gerou seu fruto amargo nos 12 filhos de Jacó.  O auge do favoritismo manifestou-se na vida de Jacó, que amava sua esposa  Raquel mais que as outras três, e o filho dela, José, mais que seus outros irmãos (Gn. 37:3).  Jacó não somente favoreceu a José, mas foi muito ingênuo ao fazê-lo.  Ele estava totalmente desligado daquilo que se passava na sua família.  Não percebia o ódio que os outros sentiam por José, especialmente depois que este ganhou a túnica especial feita pelo pai (Gn. 37:4, 5, 11).  Jacó mandou seu filho predileto como cordeiro ao matadouro quando o enviou para verificar o bem-estar dos seus irmãos que estavam longe de casa.  Só Deus foi capaz de mudar o quadro de engano, crueldade e ódio que resultou quando os irmãos venderam José como escravo.  Mesmo assim, Jacó não aprendeu a lição e passou a favorecer o caçula Benjamim como havia feito com José.

Existe uma moral dupla da história de Gênesis: 1) Favoritismo é pecado; 2) Favoritismo destrói a família de dentro para fora.

 Como Evitar o Favoritismo na Família

Como pais, queremos tratar os nossos filhos com equidade, de forma justa.  Não queremos que nenhum deles se sinta perdido ou “esquecido”.  Traçamos aqui algumas sugestões práticas que podem contribuir para que cada criança se sinta especial, amada incondicionalmente pelos pais.  Só uma palavra de cautela: Não existem fórmulas mágicas!  O ambiente familiar é afetado muito mais por atitudes sutis e diárias que por “programas” ou atividades ocasionais.

1. Gastar tempo individual com cada filho.  Aqueles minutos preciosos antes da criança dormir oferecem uma oportunidade rara para investir individualmente na vida do filho.  Mas o pai sábio também marca encontros especiais com seus filhos: um café da manhã, só vocês dois; um passeio no parque; um jogo de mesa.  Estes encontros ocasionais podem incluir um tempo informal de “bate-papo”, talvez um compartilhar devocional, e um tempo para se divertirem juntos.  Que tal começar com um encontro especial por semestre com cada filho?

  1. Declarar e demonstrar a cada filho o seu  amor incondicional.  Não apenas quando se destacam, mas também quando “pisam na bola”, os filhos precisam contar com o amor dos pais.  Talvez tenham que ser disciplinados  depois de uma “aprontação”, mas saberão que a dor é motivada pelo amor.  Este amor pode ser expresso por abraço depois da disciplina, palavras de encorajamento e incentivo, ou aquela pequena lembrança na volta de uma viagem que diz “Estava pensando em você enquanto longe.”
  2. Nunca fazer comparações entre irmãos.  “Por que você não pode ser como seu irmão . . .?” “Sua irmã nunca teria feito isso . . .” e outros comentários semelhantes, destroem  a segurança da criança.  São evidência concreta de favoritismo no lar.
  3. Evitar ser uma família “filho-cêntrica”. Um dos maiores erros cometidos pelos pais é colocar os filhos no centro do universo familiar, quando Deus planejou a família para girar em torno do relacionamento marido/esposa (Gn. 2:24,25).  A verdadeira segurança dos filhos não está em receber toda a atenção dos pais, mas em saber que há amor genuíno e profundo entre seus pais.

O “filhocentrismo” manifesta-se em rivalidade entre irmãos.  O problema tem início,  muitas vezes, quando aquele filho que estava  acostumado a ficar no centro do universo de repente tem que compartilhar o seu espaço com outro.  Rivalidade é sinal de que talvez outros relacionamentos na família não estejam em ordem.  Além de reforçar o relacionamento marido/esposa, os pais precisam fazer o possível para que cada filho se sinta amado e especial, com um lugar próprio na órbita familiar.

  1. Ajudar os seus filhos a apreciarem o que é especial nos seus irmãos. Esta é uma marca de amor genuíno: “O amor não arde em ciúmes . . . não procura seus interesses . . . regozija-se com a verdade” (1 Co. 13:4-6).  Ela deveria caracterizar a família do crente, mas raramente é vista.  A competição pelo amor e atenção dos pais, e a insegurança com relação ao “status” na família, contribuem para inveja e egocentrismo.  Os pais que distribuem elogios genuínos para todos os seus filhos, e que os encorajam a fazerem o mesmo, promovem amor mútuo na família.
  2. Fazer o possível para ser justo, sem cair no jogo da “igualdade”. Em outras palavras, nunca será possível ser totalmente justo na distribuição do seu tempo, da sua atenção, dos privilégios, ou do dinheiro que gasta nos presentes.  A vida não é justa, pelo menos deste lado da eternidade, e os filhos terão que aprender esta lição na família.

Entretanto, os pais não precisam  exagerar as injustiças da vida.  Podem fazer o possível para verificar que cada filho tenha sua vez de ficar no volante com papai, ou de escolher o primeiro pedaço de bolo na festa, ou de ganhar a primeira bala.  Na nossa família criamos um sistema de escolher números cada segunda-feira para determinar os lugares  na mesa durante as refeições da semana (todos sempre querem ficar perto da mamãe!).    Idéias semelhantes podem eliminar muita confusão na família, e qualquer acusação de favoritismo.

  1. Não deixar seus filhos usar a culpa para manipular os pais. Os pais têm que reconhecer que alguns filhos são espertos demais, e vão descobrir que seus pais andam preocupados em não cair no favoritismo.  Podem até explorar a situação (imagine!).  Tome cuidado para que nem sempre a “roda que faz mais barulho leve a graxa.”  Faça o melhor possível para expressar amor incondicional, e não cair em armadilhas de manipulação!
  2. Conversar com seu cônjuge para ver se há pontos cegos. Naturalmente existem afinidades maiores entre alguns membros da família, especialmente quando há interesses e temperamentos semelhantes.  Isso não é  pecado.  Mas para que não se torne uma influência negativa na família, o casal precisa criar o hábito de conversar abertamente sobre cada um dos filhos, e suas necessidades únicas, verificando se um ou outro está ficando para trás.
  3. Manter uma “porta aberta”para  seus filhos conversarem com vocês.  A conversação aberta e franca contribui muito para que cada filho se sinta seguro.    Os filhos precisam saber que podem se aproximar de qualquer um dos pais com dúvidas, dificuldades, ou até mesmo reclamações (feitas com respeito, é claro).  Na nossa família, além de tentar manter a porta aberta a qualquer hora, temos um “Concílio Familiar” de dois em dois meses para tratar de questões familiares que precisam ser resolvidas.  Esta conversa ajuda a manter relacionamentos abertos e saudáveis na família.

Conclusão

Uma Palavra de Graça:  Quem é suficiente para colocar em prática estas coisas?  Ninguém.  Como Jesus disse, “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo. 15:5).  Como pais temos que depender da graça e do amor de Deus que há de cobrir uma multidão de falhas nossas.  Não é uma desculpa, simplesmente um fato: Deus há de suprir o que não conseguimos por nós mesmos, se dependermos dEle.  Mesmo nas histórias bíblicas que vimos acima, embora houvesse conseqüências sérias,  a graça de Deus superou a falha humana.

Que eu saiba, o meu amigo Marcos realmente aprendeu uma lição naquele dia no McDonald’s.  Não tenho certeza, mas imagino que agora ele faça chamada cada vez que sai com seus filhos.  Nunca mais um deles reclamou “Esqueceram de mim!”  Espero que um dia eu possa falar a mesma coisa sobre meus filhos–e você sobre os seus.