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Um filme tão bom que arruinaria você. Você o assistiria? | Entretenimento

É a pergunta que o falecido David Foster Wallace coloca diante de cada leitor de seu romance Graça infinita. Na história, o filme Infinite Jest cativa tanto os corações e os olhos que nenhum outro entretenimento pode competir – o direcionamento da trama, o gatilho para os temas maiores se concentrarem, tudo parece extremamente atraente. “O livro é sobre um diretor de cinema de arte que cria um filme tão divertido que qualquer um que o assiste nunca quer fazer mais nada”, disse o autor em uma entrevista. “Então a questão crucial torna-se: se tal coisa existisse, você se aproveitaria disso ou não?” 

No romance, o governo dos EUA faz o possível para investigar o filme viciante e suas consequências. Um homem feito de rato de laboratório, com o corpo atado à cadeira, eletrodos presos a cabeça, assiste ao filme, narrando aos pesquisadores a cena de abertura, isto é, “antes que as energias mentais e espirituais do sujeito diminuam abruptamente a um ponto em que até voltagens quase letais dos eletrodos não conseguiam desviar sua atenção do entretenimento”. Tendo visto o filme, e não querendo nada além do que o assistir repetidamente, as “vítimas” são enviadas para manicômios. “O significado da vida das pessoas entrou em um foco tão restrito que nenhuma outra atividade ou conexão poderia prender sua atenção. Possuem aproximadamente as energias mentais/espirituais de um inseto voando em direção a luz”. 

Se um filme fosse fatalmente bom e letalmente divertido, você o veria? 

 

Morte por doces 

Na entrevista de Wallace em 1996 com Judith Strasser na Rádio Pública de Wisconsin, ele expressou suas ansiedades pessoais por nossa cultura de diversão. O livro é “uma espécie de exagero paródico da relação das pessoas com o entretenimento hoje em dia”, ele disse, “mas não acho que seja tão diferente”. 

 

Ele estava soando um alarme. 

 

No romance, as relações entre EUA e Canadá são tensionadas a ponto de certos canadenses tentarem transmitir o filme para os EUA como um subterfúgio cinematográfico – uma tentativa de fazer com que os Estados Unidos “se engasguem até a morte com doces”, ou seja, se entretendo. Wallace conseguiu criar uma metáfora para toda a indústria de entretenimento americana em um filme, tão sedutor, que o grande desafio do governo dos EUA no enredo é determinar como alertar as pessoas para não assistirem ao filme sem fazer com que todos se apressem em vê-lo imediatamente. 

 

“Eu penso que muito desse tipo de reviravoltas no livro se resume ao fato de que o governo não pode fazer muita coisa. Que nossas decisões sobre como nos relacionamos com diversão, entretenimento e esportes são muito pessoais, tão particulares que estão entre nós e nossos corações”, afirmou ele. “Na verdade, há uma boa quantidade de humor no governo se contorcendo tentando descobrir o que fazer. Essas decisões terão que ser feitas dentro de nós como indivíduos, sobre ao que vamos nos entregar e sobre o que não somos”. 

O romance é uma questão para os cidadãos da América: eles terão “os meios para evitar se entreter até a morte?” 

 

Telas são melhores que a vida? 

 

O romance se passava no futuro, alguns anos depois dos dias que foi escrito, mas não muito longe. Hoje, estamos vivendo no futuro descrito pelo autor, e ele pretendia que seu alarme soasse mais alto. “O livro deve parecer meio surreal e estranho a princípio e depois, de uma maneira meio assustadora, parecer não tão implausível”, disse ele vinte e dois anos atrás. 

“Em algum momento, teremos pornografia em realidade virtual. Gostaria de convidá-lo a pensar, considerando o nível de pessoas cujas vidas estão arruinadas apenas pelo vício em strip-tease por vídeo agora – que tipo de recursos teremos que cultivar em nós mesmos e em nossos cidadãos, para não nos entregar a esta tecnologia? Quero dizer, talvez isso pareça bobo, mas as coisas vão ficar cada vez melhores e não está claro para mim que nós, como cultura, estamos ensinando a nós mesmos ou a nossos filhos sobre o que vamos dizer sim e não”. 

Sem ser anti-diversão ou anti-TV, Wallace poderia soar o aviso. “Eu acho que de alguma forma nós, como cultura, paramos ou temos medo de nos ensinar que o prazer é perigoso, e que alguns tipos de prazer são melhores que outros, e que ser humano significa decidir quanta participação ativa queremos ter em nossas próprias vidas”. 

 

“… ao nos entregarmos ao doce entretenimento, ficamos com um apetite enfraquecido pela sólida nutrição de nossas devoções diárias” 

 

“Temos que reavaliar nosso relacionamento com diversão, prazer e entretenimento porque vai ficar tão bom, e tão sufocante, que teremos que forjar algum tipo de atitude em relação a isso que nos permita viver”. 

Ele estava certo. A mídia continua a ficar melhor e mais viva. Efeitos computadorizados estão se tornando mais comoventes. Filmes mais impressionantes. Dramas de TV mais atraentes. Atores mais persuasivos. “Nós vamos ter que chegar a algum tipo de compreensão sobre o quanto nós vamos nos permitir, porque provavelmente vai se tornar muito mais divertido do que a vida real.” Ele estava falando de TV, filmes, jogos, e a mídia de massa, mas mesmo as mídias sociais e a Internet, enquanto democratizavam as vozes, não tornariam nossas telas menos viciantes, e Wallace sabia disso. 

As telas se tornarão mais divertidas que a vida real. “E quanto melhores as imagens ficarem, mais tentador será interagir com imagens do que com outras pessoas, e acho que mais vazio vai ficar. Isso é apenas uma suspeita e apenas a minha opinião”. 

 

Temperança sobre a mídia 

 

Tudo isso foi mais do que teoria para Wallace, que abandonou sua TV. “Eu não tenho TV, porque se eu tivesse uma TV, a assistiria o tempo todo”. E essa é a simples autoconsciência necessária na era do vídeo. 

“Eu não tenho uma TV, mas isso não é culpa da TV. É minha culpa” ele reiterou. “Depois de uma hora, eu nem mesmo estou gostando de assistir, porque estou me sentindo culpada pelo quão improdutivo eu estou sendo. Em seguida, fico ansioso, o que faz com que eu queira me acalmar e me distrair, então eu assisto TV ainda mais. E isso só fica deprimente. Minha própria relação com a TV me deprime”. 

Nem todas as nossas TVs devem entrar no lixo, mas devemos todos cultivar a autoconsciência da mídia. É aqui que começa a temperança. Não falando: “Prove para mim que meus programas e séries são pecaminosos”; ou “Dê-me indicações de mídia com restrições”; ou “Prove para mim que meu jogo de console ou computador está errado”. Começa com uma percepção auto-reflexiva, enquanto procuramos preservar os prazeres mais elevados, dizendo não às indulgências menores. 

 

O bem sem fim da TV 

O problema com os videogames não é que os jogos sejam maus, mas justamente que sejam imersivamente bons. As franquias de jogos estão ficando maiores à medida que a jogabilidade se torna mais realista. Vivemos em uma época em que todas as manicures estéticas da cultura do prazer visual digital alcançaram alturas espantosas de poder e influência. Eles nunca foram melhores. Ainda assim, eles estão melhorando. 

O problema com a TV não é que a TV é má, mas a TV é infinitamente boa em nos dar exatamente o que queremos sempre que quisermos. Nossas plataformas sob demanda continuam crescendo com opções, novos lançamentos e favoritos clássicos das gerações passadas. Como toda a história da TV é oferecida para nós, nossos novos lançamentos de TV estão ficando mais complexos e texturizados, mais graficamente impressionantes, exigindo mais imersão e foco dos espectadores. 

O que isso tudo significa é que nós, os espectadores, somos atraídos com iscas cada vez mais brilhantes para a deriva passiva em um sonho escapista de nossas vidas chatas com sussurros que, em algum lugar, a vida é mais rápida, mais densa, mais interessante, mais. . . bem, animada do que a vida contemporânea. 

A vida cotidiana nunca competirá com os mágicos tele-visuais da Electronic Arts, Nintendo, Hollywood e HBO. 

 

Daqui para frente 

Não estou sugerindo que nos entregarmos ao entretenimento nos deixará sem tempo para nossas devoções matinais. Estou sugerindo que, ao nos entregarmos ao doce entretenimento, ficamos com um apetite enfraquecido pela sólida nutrição de nossas devoções diárias. O maior perigo: Nós não estamos destinados a sobreviver apenas com as energias espirituais de um inseto em volta da lâmpada, mas a florescer no estado de alerta da presença do Espírito. 

 

“Nem todas as nossas TVs devem entrar no lixo, mas todos nós devemos cultivar a autoconsciência da mídia”.  

 

Se Wallace ainda estivesse vivo, certamente ainda estaria pedindo que fizéssemos esse experimento mental para desafiar nossas dietas de entretenimento. Mas os cristãos são equipados pela Escritura para retomar a conversa a partir deste ponto. Estas são decisões muito pessoais entre nós, nossos corações e nosso Deus, tudo pelo bem da nossa alma e pelo bem dos nossos filhos, convicções protetoras que nos possibilitarão viver verdadeiramente e entregar nossos corações – não para uma tela brilhando que não pode nos amar de volta – mas para nos entregarmos aos prazeres espirituais de um Salvador que promete nos devolver nosso amor porque  já nos amou primeiro (1Jo 4:19). 

Tony Reinke (@tonyreinke é escritor senior do Desiring God e autor de 12 Ways Your Phone Is Changing You (2017), John Newton on the Christian Life (2015), and Lit! A Christian Guide to Reading Books (2011). Ele apresenta o podcast Ask Pastor John e vive em Twin Cities, com sua esposa e 3 crianças. 
Texto traduzido por Igor José Santos Ribeiro