Faltavam apenas dez minutos para o final do jogo quando o técnico do nosso time descobriu que alguns dos seus jogadores mais novos precisavam ainda de muito treino. Eu havia acabado de entrar em campo e saltei o mais alto que pude numa disputa de bola com o adversário. Inexperiente, ao invés de cair em pé, retornei ao planeta terra pela extremidade oposta. Recordo-me apenas vagamente do que aconteceu nos momentos seguintes. Quando acordei, eu não me lembrava do local onde estávamos e, pior ainda, mais tarde descobri com embaraço que minha alegria pela nossa “vitória” não era nada apropriada — havíamos perdido o jogo por 4 a zero. Eu me tornara vítima da amnésia.
Amnésia espiritual
Qualquer pessoa que tenha experimentado um período de amnésia conhece a sensação desconcertante de acordar de repente e perceber que uma parte de sua vida foi apagada da memória. Que tragédia! Contudo, uma tragédia ainda maior persegue hoje inúmeras famílias cristãs. Acreditando-se vencedoras, descobrem que estão prestes a perder a batalha pela preservação da lembrança mais preciosa do nosso legado espiritual. A amnésia espiritual apaga das nossas mentes a lembrança de Deus.
Identificamos um padrão que parece se repetir com certa frequência entre as famílias crentes:
A primeira geração conheceu a Deus
A segunda geração conheceu fatos acerca de Deus
A terceira geração não conheceu a Deus
O desvio da fé por parte dos filhos não começou com a chegada da televisão, da música rock ou das drogas. Há quatro mil anos, Moisés, por inspiração divina, previu o problema e deu o seguinte aviso ao povo de Israel:
“Havendo-te, pois, o SENHOR teu Deus introduzido na terra que, sob juramento prometeu dar a teus pais … quando comeres e te fartares, guarda-te para que não esqueças o SENHOR, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt. 6:10-12).
O perigo de então é o perigo de agora. As pessoas naturalmente se esquecem do SENHOR. O vírus da prosperidade amortece os sentidos e provoca a amnésia espiritual. A maior ameaça desta enfermidade é a sutileza com que contamina. Quem iria imaginar que os filhos e netos da comunidade que passou pelo deserto abandonariam o SENHOR que os havia tirado do Egito? O povo de Israel esqueceu-se do seu Deus no decorrer de uma geração. Juízes 2 registra que aquela geração que havia visto todos os feitos grandiosos de Deus em favor de Israel serviu a Ele, mas
“outra geração após deles se levantou, que não conhecia ao SENHOR, nem tampouco as obras que fizera a Israel” (Jz. 2:10).
Será que o esquecimento vem da noite para o dia? Dificilmente. A prosperidade e a negligência dos pais em transmitirem à geração seguinte as palavras e os feitos de Deus criam um contexto favorável para a amnésia espiritual. Como pais, deveríamos ficar profundamente sensibilizados e preocupados diante do fracasso de Israel. Se os filhos daqueles que tiveram tantas experiências marcantes com Deus esqueceram-se dEle, como escaparão os nossos filhos? Como alcançaremos vitória sobre a amnésia espiritual?
O tratamento preventivo consiste em tomar vacinas–injeções da Palavra de Deus recebidas dentro do lar. Deuteronômio 6:4-9 prescreve que a Sua Palavra e a lembrança dos Seus feitos dominem de tal forma a vida dos crentes que seus pensamentos e palavras naturalmente se voltem para Ele durante o dia todo. O cristianismo do “um ao dia” — uma breve oração antes das refeições, uma leitura bíblica diária ou até mesmo a freqüência regular ao culto do domingo de manhã — não é em si suficiente para deter a imensa onda de pressão que incita os jovens a abandonarem a fé. Deus pede mais do que um interesse ritualista em Sua Palavra. Sua receita prescreve um interesse vivo na Pessoa dEle e requer espontaneidade e criatividade, além de exercício na piedade.
Como aplicar estas orientações em nossos lares?
- A instrução familiar deve ocorrer com o objetivo de desenvolver em nossos filhos o amor a Deus (v. 5), prevalecendo sempre a qualidade e não necessariamente a quantidade. O tédio é um hóspede indesejado na devocional familiar.
- O amor a Deus cresce pelo conhecimento da Sua Palavra (v. 6). Já que conhecer os mandamentos de Deus é um pré-requisito para obedecer a eles, a instrução familiar deve oferecer tanto conteúdo como aplicação.
- O conhecimento da Palavra de Deus acontece quando os pais a ensinam a seus filhos com diligência (v. 7). O método divino para o treinamento de homens e mulheres piedosos começa no “seminário do lar”. A escola dominical, os clubes bíblicos, as escolas evangélicas, os acampamentos e ainda outros programas podem suplementar o treinamento doméstico, mas nunca substitui-lo. Deus dá primeiramente aos pais a responsabilidade de passarem adiante o legado da fé cristã.
- A família precisa estar tão envolvida com Deus que os pensamentos e conversas se voltem naturalmente para Ele durante o dia inteiro. Conforme vs. 7 há duas ocasiões especialmente propícias ao treinamento espiritual:
- A qualquer hora: A instrução não deve ficar limitada a uma devocional após o café da manhã ou uma história antes de dormir. Até mesmo os momentos mais rotineiros da vida — “quando você se assenta em casa e quando anda pelo caminho” — oferecem ocasiões para reflexão teológica espontânea e criativa. Por exemplo, as formigas que carregam suas migalhas podem estimular uma discussão sobre a diligência (Pv.6:6-8). A descoberta de um cãozinho perdido pode ser oportunidade para uma conversa sobre a alegria que Deus sente pela salvação de pecadores perdidos (Lc. 15).
- Nas horas mais favoráveis ao ensino: Os teóricos do aprendizado confirmam aquilo que estudantes vêm percebendo há anos: os últimos pensamentos da noite costumam ser os primeiros da manhã e os primeiros pensamentos da manhã ecoam na mente durante o restante do dia. Deus pede para Si estes momentos do dia especialmente apropriados para o treinamento formal e informal. Os pais que querem combater a amnésia espiritual devem iniciar e terminar cada dia falando do SENHOR, além de fazerem todo esforço para preencherem o dia com reflexão espontânea sobre a Sua Palavra.
- A família precisa se cercar de recordações constantes da Palavra de Deus (v. 8, 9). Os fariseus consideraram estas ordens de modo tão literal que seus filactérios (pequenas caixas que continham versículos bíblicos) de fato se tornaram símbolos–de hipocrisia e não de piedade. É claro que o fracasso dos fariseus não significa que devemos rejeitar a aplicação prática destes versículos. Pelo contrário, pais crentes deveriam estar preocupados em verificar, por exemplo, o que ocupa a parede dos quartos dos seus filhos ou o tipo de revistas que há em casa — bons indicadores da temperatura espiritual da família.
Algumas Sugestões Práticas
Para dinamizar a devocional familiar, sugerimos o seguinte:
- Seja criativo e flexível. Certamente não queremos ser palhaços “barateando” a Palavra de Deus. Mas não há nada de espiritual em cansar nossos filhos com a Palavra. A devocional familiar exige criatividade — aquela criatividade que vem do próprio Deus, de Quem fomos criados à imagem e semelhança. Para ser equilibrado e criativo, os pais devem ser flexíveis ao elaborar os seus planos para a devocional, atentos para aproveitar oportunidades especiais e mesmo inesperadas.
- Seja breve. Em termos gerais, a devocional familiar deve durar de 5 a 10 minutos quando os filhos são pequenos. Se em determinada ocasião ou ambiente for especialmente propício, é possível estendê-lo por mais tempo, mas deve ser uma exceção e não regra.
- Seja informal. Por anos o termo “culto doméstico” tem assustado alguns pais desnecessariamente. O culto doméstico não deve ser uma miniatura do culto público, formal, litúrgico,e até frio. A adoração familiar deve ser viva e, conforme Deuteronômio 6:4-9, espontânea e natural. Ninguém ganha pontos com Deus pela formalidade. Nada se compara ao espírito de união que experimentamos ao nos acomodarmos no sofá com nossas crianças no colo, de pijama, para juntos cantarmos, orarmos e lermos a Palavra de Deus.
- Seja ilustrativo. Quem dirige a devocional familiar deve fazer uso de material áudio-visual, dramatizações, ilustrações, histórias, e outras técnicas para tornar vivas as verdades bíblicas. É fato comprovado que aprendemos muito melhor quando participamos do estudo bíblico com TODOS os sentidos, e não somente com a audição. O próprio Senhor Jesus não ensinava nada aos seus discípulos sem contar uma história (Mt. 13:34)! Se a repetição é a mãe da aprendizagem, o uso ilustrações cativantes deve ser o pai!
- Seja prático. Um dos erros mais comuns no tempo devocional da família é a preocupação excessiva com o conteúdo e deficiente com a aplicação. Em outras palavras, os pais ficam satisfeitos quando enchem o cérebro da criança com informações sobre a Bíblia e esquecem de atingir o coração para promover mudança de vida. A devocional bem-sucedida nunca termina antes de descobrir pelo menos uma aplicação prática para a vida de cada membro da família. Alguma mudança concreta em vidas deve ser o alvo de todo estudo bíblico:“Tornai-vos, pois, praticantes da Palavra, e não somente ouvintes” (Tg. 1:22).
Dr. Howard Hendricks conta a história do pregador inglês Richard Baxter. Durante três anos este homem altamente capacitado por Deus pregou de todo o seu coração a um povo rico e sofisticado, mas sem resultados visíveis. Finalmente, Baxter clamou a Deus: “Senhor, faz algo por este povo ou então eu morro.” Conforme relato do próprio pregador, foi como se Deus tivesse respondido em voz bem alta e recomendado a ele: “Baxter, você está trabalhando no lugar errado. Está esperando que o avivamento venha através da igreja. Tente pelo lar.” Baxter começou a visitar os lares, ajudando famílias a organizarem um “altar familiar”, até que o Espírito Santo ateou fogo naquela congregação e fez dela uma igreja forte.
Andamos preocupados em nossos dias com “avivamento” e “reavivamento”. Mas será que estamos esperando que a igreja faça aquilo que deve ter início no lar? Será que estamos trabalhando no lugar errado, como se uma “experiência emocional” nos desse espiritualidade instantânea? Ou será que o verdadeiro avivamento virá através do esforço de pais dedicados ao treinamento espiritual dos filhos no contexto do lar? O pai que ama Deus de todo coração, transmite sua fé à próxima geração. Que Deus nos dê pais comprometidos em promover um avivamento que comece no lar cristão e de lá se espalhe para toda a igreja brasileira, chegando até os confins da terra. É a única maneira que temos de evitar “amnésia espiritual”.