“Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Provérbios 4.23).
Uma das lições mais importantes que aprendi nos meus estudos para o doutorado em interpretação bíblica, com reflexos para minha compreensão da vida como um todo, foi que não existe leitura de um texto que seja absolutamente neutra e objetiva. Nisso me ajudaram Derrida, Foucault, Gadamer, Ricoeur e outros profetas e precursores das chamadas novas hermenêuticas.
Isso que é verdade quanto à leitura de textos também é verdade quanto à leitura da realidade. Todos nós enxergamos a vida através dos óculos formados por nossas experiências, nossos preconceitos e pressupostos e acima de tudo, nossas crenças.
Muitos autores contribuíram a derrubada do mito da neutralidade defendido no Iluminismo e que se tornou padrão na academia. Entre eles menciono o historiador da ciência Thomas Kuhn, cujo livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” (1962) representa um marco nessa disciplina. O argumento de Kuhn, em linhas gerais, é que, ao contrário do que postulava o positivismo científico, os cientistas não são meras máquinas de análise e registro de informações – são pessoas de carne e osso, com sentimentos, emoções e intuições. Eles não registram passivamente suas observações, mas projetam ativamente as suas crenças. As suas experiências pessoais servem para formar os paradigmas, que são estruturas dominantes que organizam os experimentos que eles realizam.
Em suma, as revoluções científicas avançam, não quando surgem novas descobertas, as quais são incorporadas e absorvidas aos paradigmas dominantes – mas quando os paradigmas mudam. Com isso Kuhn destacou e firmou a importância dos paradigmas e dos pressupostos nas áreas do conhecimento. Ele valorizou as crenças e convicções das pessoas ao lerem e interpretarem a realidade ao seu redor.
É nesse contexto que falamos da importância e da legitimidade de uma visão de mundo (“cosmovisão”, Weltanschauung, termo usado primeiramente por E. Kant). Uma cosmovisão é uma maneira de ver o mundo de acordo com aquilo que se crê. De acordo com Ronald Nash, destacado filósofo cristão, em sua obra Questões Últimas da Vida (2008), existem cinco crenças mais importantes que definem a cosmovisão de alguém:
- Deus – ele existe? Qual sua natureza? Há mais de um Deus?
- Metafísica – qual o relacionamento de Deus com o universo? O universo existe? Qual sua origem?
- Epistemologia – é possível saber, entender e conhecer? Existe verdade?
- Ética – existem leis morais que regem a conduta humana? Elas são absolutas ou relativas?
- Antropologia – o ser humano é apenas corpo ou materialidade, ou tem uma dimensão espiritual? Qual sua origem? Existe vida após a morte?
Aquilo que as pessoas acreditam sobre esses cinco pontos haverá de tingir os óculos com que elas enxergam e decifram o mundo ao seu redor, e haverá de influenciar de forma decisiva seu relacionamento consigo mesmo, com o próximo, com o mundo, em casa, no trabalho e na sociedade como um todo.
O livro de Provérbios já falava da importância do coração e da mente (leb em hebraico) para a compreensão da totalidade da vida (vide acima Provérbios 4.23). É nesse contexto que falamos da importância e da legitimidade de uma visão de mundo que parta dos valores teóricos e morais do cristianismo, e que faça parte dos paradigmas e matizes que orientam o labor acadêmico de uma universidade confessional.
Uma visão de mundo cristã como referencial na academia deveria levar em conta a existência de um Deus pessoal e sua ação na história, a revelação que ele faz de si mesmo na natureza e nas Escrituras judaico-cristãs. Deveria ver o ser humano como criado à imagem deste Deus e levar em conta a presença e a realidade do mal nesse mundo. Deveria enxergar o mundo e suas leis como expressão do caráter desse Deus, que é bondoso, justo e sábio.
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Visto que não existe neutralidade na academia, sempre teremos paradigmas que dependem de visões de mundo. Há muitas visões de mundo, como marxismo, humanismo, ateísmo, agnosticismo, materialismo, para nomear algumas. Se não podemos escapar de termos uma visão de mundo que norteie e influencie decisivamente o que fazemos na academia, que abracemos, então, em nossos labores a visão cristã de mundo. Além de permitir o diálogo com aquilo que comunga com as demais visões de mundo, ela tem a vantagem de ser aquela visão de mundo que primeiro ofereceu as condições para o surgimento da ciência moderna, como veremos noutros posts mais adiante.
Por Augustus Nicodemus. Publicado com permissão.
Dr. Augustus Nicodemus (@augustuslopes) é pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia, vice-presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana doBrasil e presidente da Junta de Educação Teológica da IPB.